quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Consciências


Agradeço a meu grande amigo Roberto Soares Caldas, cuja inquietação sobre simulações e meta-simulações me inspirou a escrever este texto.

Um dia desses acordei sobressaltado, com suor frio no rosto. De meu sonho só lembrava de sua voz, ameaçando: “Nem a sua mamãe será capaz de te reconhecer quando acabarmos com você”.

Olhei para o computador, em cima da minha escrivaninha. Ainda estava ligado, do mesmo jeito que eu o deixara na noite anterior. Na tela, renderizações tridimensionais de capangas, criminosos sem escrúpulos, conversavam entre si e faziam suas rondas.

No começo tudo era apenas um jogo. Enquanto eu saltava de gárgula em gárgula, prédio em prédio, eu conseguia escutar suas conversas enquanto se gabavam um para o outro, ou enquanto reclamavam de frio, fome, ou enquanto mostravam medo ou raiva dos líderes das gangues rivais, ou enquanto eles diziam como iriam acabar comigo.

Tudo mudava, no entanto, quando eu aparecia. De repente todos se mobilizavam para tentar me destruir. Mal sabiam eles quem eles enfrentavam, como eu conseguia usar as sombras e meu arsenal avançado para acabar com eles antes que pudessem reagir.

Perdi muitas horas nessa rotina, dando voltas por Arkham City e tentando acabar com os planos de vilões como o Coringa, o Duas Caras, o Pinguim… No final de cada jornada, o jogo era salvo imediatamente onde eu havia parado e então eu o fechava para continuar fazendo outras coisas produtivas em meu computador.

Até que um dia não consegui fechar mais o jogo.

Não sei exatamente qual foi o momento. Talvez tenha sido ao monitorar os batimentos cardíacos de um capanga que corria em pânico quando constatou que seus colegas haviam sido abatidos um por um. Não sei. Mas o que aconteceu é que de repente pensei: o que acontece realmente quando eu desligo meu computador?

Aquelas renderizações tridimensionais de capangas, com suas “simulações" de emoções, com suas respostas a estímulos, com suas rotinas de trabalho para seus chefes mafiosos, será que eram meras renderizações? Aqueles seres nada mais eram do que correntes elétricas correndo semi-aleatoriamente pelos terminais de processadores e componentes eletrônicos na minha placa mãe. Mas, afinal, nossos pensamentos e nossas consciências também nada mais são do que o resultado de correntes elétricas passando por componentes orgânicos em nossos cérebros. Quantas destas minúsculas correntes são necessárias para que de suas combinações surja uma consciência, capaz de pensamentos e ações próprios? Quantos micro amperes diferenciam um autômato finito de uma consciência?

É claro, você dirá, que aqueles homenzinhos simulados no computador são simples demais para que possamos sequer cogitar que eles possuem uma consciência de verdade. Afinal, uma simulação é necessariamente uma simplificação do objeto real que está sendo simulado. Se não fosse assim, não estaríamos simulando mas sim criando uma cópia do objeto. Então, é de se esperar que os capangas simulados no computador sejam versões muito simples de seres humanos. Mas quem pode saber se eles não possuem uma consciência, por menor que seja? É possível saber qual é o menor tamanho de uma consciência?

E se fossemos nós simulações dentro dos computadores de uma civilização mais avançada do que a nossa? Esta civilização poderia achar que, por sermos meras simulações, não seriamos seres complexos o suficiente para exibirmos o que eles reconhecessem como consciências. E então, eu pergunto, o que impediria que eles desligassem seus computadores quando se cansassem de jogar?

No começo eu pensava: tudo bem, posso desligar o jogo que, quando eu voltar, estarão todos lá - o Batman, o Coringa, a Harley Quinn, os bandidos…

Isso não é verdade! Quando o jogo é fechado e a memória ocupada por ele é liberada, o máximo que eu consigo fazer é trazer uma cópia de um estado anterior do jogo. Mas, supondo uma analogia do nosso mundo, se eu criasse uma cópia exatamente igual de um cérebro, incluindo todas as correntes elétricas passando pelos neurônios de um momento específico da vida do cérebro modelo, você acha que surgiria a mesma consciência do cérebro original? Que, devido a alguma propriedade emergente impossível de compreender, aquela combinação de correntes elétricas copiadas criaria uma conexão com a mente original, de modo que as duas passassem a representar a mesma consciência? Ou você acha que eu simplesmente teria criado uma consciência nova, um ser com pensamento próprio que, à parte de um conjunto inicial de memórias, não teria mais nada em comum com a mente que lhe serviu de modelo?

Pois bem. Se você chegou à mesma conclusão que eu cheguei, terá percebido que toda vez que você sai do jogo você está matando todas aquelas proto-consciências, e está recriando consciências totalmente novas toda vez que abre o jogo novamente.

É isso que você quer? Ser o genocida de milhares? Só porque cansou de jogar?


Eu já decidi. E é por isso que não desligo mais o meu computador.

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